Aí há uns quatro séculos e meio — corria precisamente o ano de 1504 — viviam em Barcelos dois homens que se odiavam.
Um deles chamava-se João Pires, era sapateiro, e tinha uma filha, a Luisinha, que o ajudava e era todo o seu encanto. O outro dizia-se descendente de fidalgos, dava pelo nome de D. Pedro Martins, e tinha-se na conta de galanteador irresistível.
O ódio entre os dois homens nasceu por via da Luisinha. D. Pedro Martins perseguia-a com galanteios constantes. E certo dia, quando ela foi à fonte buscar a água, ele saiu-lhe de repente ao caminho.
— Ah, minha bela, ainda bem que te encontro!
A rapariga tremeu de susto.
— Senhor, peço-lhe por tudo que me deixe em paz!
Mas ele insistiu. Autoritário. Dominador. Impertinente.
— Só depois de me responderes, cara a cara, olhos nos olhos!... Gostas de mim?...
E como ela quisesse fugir, agarrou-a fortemente.
— Espera... não fujas!...
Então, a rapariga, já desesperada, exclamou:
— Largue-me, já lhe disse!... Largue-me, senão grito por socorro!
O fidalgo soltou uma gargalhada.
— E de que te servirá gritar, minha pombinha, se estamos aqui os dois sozinhos?...
Riu mais, já a deliciar-se com a sua conquista.
— Anda cá minha pomba!... Ninguém te poderá acudir...
Mas enganava-se. Da sombra saiu outro vulto. Era o sapateiro João Pires. Com o olhar toldado de ameaças e numa voz cheia de rancor, clamou:
— Enganas-te, cavaleiro vilão!... Estou eu aqui, para acudir à minha filha!...
E avançou sobre o atrevido, de punhos no ar.
Mal refeito da surpresa, o fidalgo ainda tentou tornar-se desdenhoso. E embora largando a presa, foi dizendo, num misto de raiva e de ironia:
— Com que então uma emboscada, hem? Mas eu te ensinarei, reles sapateiro!... Eu te ensinarei a que não subas além da chinela!...
João Pires cobriu com o seu corpo a figura da filha, que tremia, aflita e chorosa.
— Não tenho medo das vossas ameaças, cavaleiro vilão!... E desde já vos previno, à fé de quem sou, que se ousardes tocar outra vez na minha filha, ficareis com as minhas mãos marcadas no rosto para sempre… Escutai bem: para sempre!
Por instantes, apenas se ouviu o arfar do peito dos dois homens e o choro triste de Luismha. Depois, D. Pedro Martins voltou a mostrar-se arrogante.
— Pois serias capaz de te atrever? Ai de ti, mísero sapateiro, ai de ti e da tua filha tão casta para uns e tão livre para outros… se te atrevesses um dia…
Porém não acabou a frase, pois diante do insulto o sapateiro investiu contra ele, sem dó nem piedade. E duas valentes bofetadas soaram no silêncio da noite, deixando a arder as faces do fidalgo.
— Pai!... Meu pai!... — chorou a voz de Luisinha.
De espanto, o fidalgo quedou-se mudo, como que feito de pedra.
E o sapateiro, ainda agressivo, limitou-se a empurrá-lo, afastando o do seu caminho.
— Ide-vos, senhor vilão, ide-vos daqui! Mostrai aos outros a vossa cara e dizei-lhes o que se passou!...
A profecia do velho sapateiro saiu certa… D. Pedro Martins ficou com os sinais das bofetadas marcados no rosto, como impressos a fogo…
E desde então, perante a chacota que todos faziam dele, jurou vingar-se de João Pires e de sua filha.
Ora aconteceu, certo dia, toda a costa vizinha de Barcelos foi atormentada por pavorosa tempestade.
E um grande barco vindo da Flandres, segundo reza a tradição do povo, naufragou brutalmente ali mesmo, em frente de Esposende.
Alguns dias depois, quando Luisinha e outras mulheres acorreram à praia, a recolher os despojos dados à costa, a bonita filha do sapateiro João Pires quedou-se espantada, olhando na sua frente, sem poder desfitar os olhos. E em voz baixa, lentamente, murmurou para si própria:
— Meu Deus, que será aquilo?... Parece a mão de alguém enterrado na areia... Tenho medo… tanto medo que nem consigo gritar!...
Relanceou a vista em redor. As outras já iam longe, sem dar sequer pela sua falta. Ela estava sozinha no meio do areal, e mais amedrontada ficou.
— Mesmo que gritasse… as outras já vão tão longe que nem sequer ouviriam a minha voz — pensou ela.
O coração bateu mais forte no seu peito. Quase sem dar por isso, ela fez uma pergunta com voz trémula:
— Meu Deus!... E se fosse a mão dum homem?
Mais se atemorizou ainda com o som da sua própria voz. Mas uma força interior, inexplicável, invencível, obrigou-a a avançar, mesmo contra a sua vontade. E devagarinho, num assomo de coragem, ela atreveu-se a desenterrar aquilo que lhe parecia a mão de alguém... Viu então que se tratava apenas de um bocado de madeiro, pertencente decerto a alguma velha cruz...
Luisinha ficou-se a olhar para o madeiro durante algum tempo. Sentia-se bem, tendo-o nas mãos. Como que se exalava dele um calor estranho, muito subtil, e um estranho perfume, muito subtil também...
Em vez de o deitar fora, Luisinha levou-o cautelosamente para casa.
— Meu pai... Veja o que eu encontrei hoje na praia...
O velho sapateiro parou de bater sola.
— Isso, Luisinha?...
Sorriu com ar de zombaria.
— E para que nos serve esse cavaco, minha filha?
Ela sentiu-se desanimada. Inventou uma desculpa.
— Talvez… para atiçar o fogo...
E o velho, encolhendo os ombros e retomando o trabalho, resmungou molemente:
— Tens razão, Luisinha… Ao menos, com este frio que está, talvez nos aqueça mais um pouco...
Parou de novo, como que tomado de um pressentimento. Olhou atentamente o bocado de madeira que a filha trouxera e disse:
— Olha que devia ser uma cruz bem bonita!...
Depois, resolveu-se.
— Vamos deitá-lo ao fogo.
E juntando o gesto à palavra, o sapateiro João Pires atirou o bocado de madeiro para as cinzas da lareira.
Logo uma claridade mais viva se espalhou pela casa. Mas ele não ligou importância de maior e voltou ao trabalho, indo sentar-se ao pé da porta, para aproveitar os últimos raios de sol.
De repente, porém, deu um salto que o fez desequilibrar-se e cair do banco em que se sentava. E gritou com voz emocionada:
— Deus do Céu!... Que é isto que eu estou a ver na rua?
Ergueu-se a custo, apontando com a sovela uma cruz luminosa que se projectava no solo.
— Será possível?... Uma cruz desenhada no chão?... Mas onde está a cruz?... Parece mesmo o resto daquela que a minha filha encontrou!...
Excitado, o sapateiro ergueu os braços ao alto, clamando:
— Milagre! Milagre!
Entretanto acorrera gente. E muitos viram o mesmo que o velho sapateiro dizia ver: a sombra luminosa duma cruz projectada no chão!
Luisinha caiu de joelhos.
— É na verdade um milagre, um grande milagre, meu pai!
E o velho sapateiro João Pires ajoelhou também e remexeu a terra com as mãos.
— Vejam… vejam bem!... Eu tiro a terra… faço uma cova… e logo a cova se volta a encher e a cruz reaparece!... Estão a ver como é verdade...
Todos responderam à uma:
— É verdade!... É verdade!...
Numa voz entre cortada de lágrimas, Luisinha murmurou:
— Meu pai, que Deus nos abençoe!... Este local ficará sagrado pelos séculos dos séculos!
A partir de então, a porta da casa de João Pires e a rua onde morava passaram a ser local de peregrinação para toda a gente da terra e dos arredores. Somente um homem em Barcelos não quis acreditar em tal prodígio, afirmando logo que se tratava de mais um embuste do velho sapateiro. Esse homem era D. Pedro Martins.
— Essa cruz não existe! São todos uns alucinados! O João Pires convenceu-os com os seus bruxedos... Digo-lhes mais: é preciso queimar esse homem e a sua filha... acabar com eles e com os seus sortilégios!... É preciso queimá-los! Queimá-los!
Seguido por alguns que também descriam do milagre, achando o momento azado para se vingar, dirigiu-se a casa do sapateiro. Ali chegado, sentindo-se apoiado pela populaça desconfiada, D. Pedro Martins avançou para a porta de João Pires.
— Querem ver como eu desmascaro o impostor de uma vez para sempre?
E com a arrogância habitual, cruzando os braços, começou em voz forte:
— Invoco o nome de Deus...
Mas nesse mesmo instante — conforme o povo reconta de geração em geração — D. Pedro Martins perdeu a fala e os seus olhos abriram-se cheios de espanto... Na sua frente, desenhada no solo em fulgurações de luz, aparecera a mesma cruz que o sapateiro João Pires vira!...
E quando conseguiu voltar a falar, o fidalgo humildemente caiu de joelhos e humildemente confessou:
— Que Deus me perdoe!... A cruz existe!... A cruz é um sinal de Deus!
Depois erguendo-se, transfigurado, ordenou:
— Aqui mesmo, todos nós... Todos, ouviram bem?... teremos de construir um templo, em acção de graças por tamanho milagre!
Assim se construiu em Barcelos a ermida anterior ao templo actual.
E diz a lenda que no mesmo instante da sua conversão desapareceram do rosto do fidalgo as marcas deixadas pela mão do velho sapateiro...
E, pelos tempos fora, a memória do milagre impôs como uma das grandes romarias portuguesas a da famosa Feira das Cruzes de Barcelos.
mas a lenda mais conhecida é esta:
Em tempos muito remotos, países protestantes do Norte lançaram nas águas revoltosas e salgadas do mar três imagens do Senhor dos Passos. Arrastadas pelas ondas e correntes, as imagens foram ter a diferentes localidades do nosso País - uma teria aparecido em Matosinhos, outra na praia de Fão e a terceira, abandonando o mar e penetrando nas águas doces e então límpidas do Cávado, teria subido o rio dando à margem em Barcelos. Depois... olhos atentos, observadores, a viram! Mãos piedosas a recolheram e transportaram para a ermida do Senhor da Cruz.
Lenda, crença ou realidade o facto é que esta versão traçou alguns laços de irmandade entre as populações de Barcelos, Matosinhos e Fão e que originou o canto popular que se segue:
“O Senhor de Matosinhos
Mandou dizer ao de Fão
Que dissesse ao de Barcelos
Que eram todos três irmãos”
Tendo como base de suporte a lenda das "cruzes irmãs” acredita o povo que a imagem recolhida nas águas do rio jamais poderá ser retirada do local onde fora colocada. Assim crendo, o povo barcelense mandou esculpir em Roma, em 1875, uma outra imagem representando o Senhor dos Passos, cuja autoria se atribui a um escultor italiano de seu nome Jeuseppe Berardi. É esta imagem que devidamente engalanada em seu andor sai na procissão do Senhor dos Passos, quando da FESTA DAS CRUZES, em Barcelos, no dia 3 de Maio.
há ainda uma outra versão da lenda:
Em 1504, sob o reinado de D. Manuel I, numa sexta-feira, dia 20 de Dezembro, por volta das 9 horas da manhã, o sapateiro João Pires regressava da missa da ermida do Salvador. Ao passar no campo da feira de Barcelos, observou na terra uma Cruz de cor preta. Como não quis guardar só para si aquilo que considerou ser um sinal sagrado, alertou o povo, que depressa veio ao local.
As cruzes apareciam sob a forma de uma nódoa negra que ia crescendo até se formar uma cruz perfeita, em que a cor não ficava só à superfície, mas penetrava em profundidade na terra. Por mais que se cavasse, sempre se achava.
O “milagre da cruz” originou uma forte devoção popular. Nesse mesmo ano, no local de aparecimento da cruz, foi erguido um cruzeiro em pedra com as dimensões da cruz miraculosamente aparecida. O fervor religioso que gerou foi tal que a população o demonstrou com procissões e ofertas. Estas iriam ser aplicadas na construção de uma ermida logo no ano seguinte – 1505, para a qual um rico comerciante de Barcelos ofereceu a imagem flamenga do Senhor da Cruz.
A imagem do Senhor da Cruz é uma imagem de tamanho quase natural, de madeira de carvalho, dos inícios do século XVI. Apenas o rosto e as mãos estão pintadas
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